Correspondentes

Aqui estão reproduzidas as cartas trocadas entre dois amigos: uma adolescente e seu professor de Português, que ficava "louco" com os erros crassos que ela cometia. A troca de cartas começou quando ela estava com 13 anos e ele, devia ter uns 40. A amizade dura até hoje: ela tem 50 e ele quase 80. Mas a frequência diminui muito quando ela se casou, aos 20 anos. As cartas continuaram a existir, porém, com maiores intervalos.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Segunda carta

Em 2005, o Professor e a Aluna se encontraram em São Paulo. Ele queria que ela o ajudasse com um projeto sobre um livro de poesias (algumas até poderão ser vistas reproduzidas em suas cartas porque ele as escrevera na época da correspondência). Foi quando ela "sequestrou" as cartas dela que estavam com ele. Só que faltam muitas. As primeiras, escritas entre 72 e 73, talvez o melhor período, ele não encontrou. Por sorte ela conseguiu resgatar as de 74 em diante. Por essa razão, vocês verão muitas e muitas cartas dele para ela, sem as respostas. Mas quando 1974 chegar, será possível intercalar as cartas dele com as dela, senão todas, pelo menos a maioria. Uma curiosidade: ele costumava escrever em folhas de papel de seda, tinha uma letra bem miudinha; gostava de intercalar parágrafos escritos em azul, ora em vermelho, ora em preto. Ela o imitava. Desenhavam caricaturas, enfim, tentavam exprimir seus sentimentos de todas as maneiras possíveis. Lembrem-se: estamos falando de uma época em que não havia Internet, scanners, nada. Apenas um papel em branco, uma caneta na mão e seus pensamentos e sentimentos loucos para se transformarem em palavras e palavras e palavras....Nesta carta ele explica por que incentivava seus alunos a se comunicarem por meio de cartas, mesmo estando próximos. E porque teve início a correspondência entre os dois. Boa leitura!

Brasília, 4/1/1973

Querida Aluna

Engraçado como as pessoas se atêm em certas datas sociais, como se ficassem impossibilitadas de agir, senão nessas oportunidades. É o caso das festas de fim de ano. De repente, aquela euforia gráfica, a enxurrada de cartões, quase que obrigatórios. Eu mesmo, expedi várias centenas. Foi um trabalhão para a minha secretária. As pessoas que durante o ano todo mantinham-se equidistantes, reaparecem através do tradicional: "Feliz Natal e um próspero Ano-Novo", como que vinculadas a esse chavão, durante vários anos. Eu mesmo tenho um primo que, por medida de economia mandou, há algum tempo atrás, fazer cartões em grande quantidade. E, todo ano recebo dele, o mesmo cartão, a mesma mensagem estereotipada. Mas...ele nunca se apercebeu que os anos vão passando...o mundo vai mudando...a moda vai criando e a mentalidade vai se reformulando.
Como se falar em Feliz natal quando o genocídio continua no Vietnã...como se pode pensar em felicidade, quando só vemos tragédias nos jornais, aumentando cada dia mais...como se pode falar em natalidade, quando justamente nos dias das festas natalinas aumenta o índice de criminalidade e mortalidade. E o Ano-Novo?
Cada Ano-Novo que surge, nós ficamos um ano mais velhos. Veja você mesma. Acaba de completar 14 anos (Dia de natal - acertei?) E ainda há pouco tempo eu a conheci uma garota com uma cara de crítica, às vezes até gozadora, envergando uns óculos que mal lhe cabiam no rosto, e ostentando, aos mal saídos 11 anos, o título orgulhoso de ginasiana. Agora você já é quase colegial.
Eu até diria que em inteligência, maturidade e desembaraço, você já chegou à fase colegial há muito tempo. Mas chega de divagações digressivas!
Eu falava era do Natal; dos homens; da boa-vontade repentina e até da excessiva preocupação em remeter uma mensagem comunicativa (Feliz Natal e um Próspero Ano-Novo) bah! bah! como querendo provar que se está vivo.
Sabe até quem teve essa preocupação inútil? NIXON. Esse mesmo que mandou bombardear uma cidade com seus hospitais, suas escolas, suas crianças, seus lares, suas famílias e suas igrejas e templos até o extermínio.
deixa pra lá o furioso.
Mas a verdade é que o que vale muito é a comunicação espontânea e não a feita em momentos esporádicos. Foi por esse motivo que eu sempre me preocupei em fortalecer a comunicação entre os meus alunos. Não ensinando como se faz, mas estimulando-os a fazê-la. Porque para que a comunicação seja perfeita, não basta que se tenha vontade ou obrigação de fazê-la, mas é preciso que se tenha coragem e sinceridade ao fazê-la. e ainda, por esse motivo foi que eu iniciei aquele trabalho de cartas entre pessoas, embora presentes. Foi para que vocês, quando estivessem longe, ou definitivamente separadas, não perdessem a amizade e o contato.
Um grupo tão capaz e inteligente como o de vocês, deve e merece uma comunicação recíproca entre os seus componentes. Você deve sentir, agora, que já não estou tão frequente entre vocês, a minha falta, na mesma proporção que eu sinto de vocês. é terrível, mas pode ser amenizada, né? Bastaria uma carta ou um simples bilhete por semana. Mas ao invés, eu não recebo nada por semana. Nem de você nem da S., da E., da N., para falar apenas nas que já me escreveram.
ATENÇÃO! Acabo de receber o seu cartão de Boas-Festas. Que bacana!
A falta de comunicação faz-me imaginar a prisão em que me encontro. Digo prisão porque realmente a minha vontade está presa a este meu gabinete de trabalho. E eu gostaria que ela estivesse solta, manifestando-se junto aos meus alunos, aos meus reais amigos.
Mas eu tenho, necessariamente, que continuar aqui, ao menos este ano.
E a C.? o R.? a  S., o Super D e tantos outros? Sumiram?
Você tem mantido contato com a S. e com a E.?
Nunca as perca de vista. São pessoas espetaculares como você também o é. São gente, entendeu? São Humanas? São bacanas.
Cada vez que eu converso com a S., mais eu fico emocionado e impressionado. Ela transpira sensibilidade. É uma pessoa ultra-sensível e que certamente deverá ganhar, futuramente, muito destaque. Gosto demais da sua humildade. Gosto demais dela.
A E. é gênio. Fora de série mesmo. tenho por ela uma admiração especial. O que ela faz ou escreve é bonito demais. É genial. Ela nunca diz: sugere. Ela nunca transmite o que quer; deixa sempre que os outros façam de suas palavras um instrumento de satisfação. Por esse motivo é que usa tantas reticências. Ela é como  gente gostaria que ela fosse. É brilhante e polida. Inteligente e bonita! Educada e literária. se ela continuar sempre assim...será sempre uma pessoa genial. Acontece, porém, que nunca mais me escreveu. E eu fiquei frustrado em relação a ela.
Se você mantém correspondência com ambas, diga para elas seguirem o seu exemplo e continuarem a me escrever.
Aluna!
O que eu falei das mensagens de Natal, não vale para você. Sabe por quê? Porque você sempre foi espontânea e nunca esperou que Cristo nascesse para desejar felicidade. Acredito que isso é um hábito que você adquiriu quando nasceu.
de qualquer forma, muito obrigado pelo cartão...pela lembrança...por ser minha amiga...por ser uma querida ex-aluna e por ser você, você mesma.
Até de repente com outra carta. Recomendações a seus pais.
Professor

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Primeira carta

O Professor havia sido transferido para Brasília. Tivera de escolher, ou melhor, fora obrigado a escolher entre o parco salário de professor de português numa escola estadual em São Caetano do Sul (SP) e um alto cargo num ministério em Brasília. Embora ele afirme que não foi o dinheiro que o motivou, a verdade é que, mesmo reclamando muito por ter de  "abandonar" suas alunas prediletas, ele foi. E para aplacar a saudade, incentivou que as meninas escrevessem cartas, muitas cartas. Ele disse que responderia a todas. de fato, ele também escreveu bastante. Naquela época não havia Internet, uma ligação telefônica interurbana era difícil e impraticável além de cara. E o Correio era uma lástima. Mas, bem ou mal, as cartas acabavam chegando, às vezes duas ou três ao mesmo tempo.
Alguns nomes foram trocados para manter a privacidade dos envolvidos. Doravante o Professor será assim designado e a menina será a Aluna. Divirtam-se!


" Engraçado como as distâncias, às vezes, desaparecem repentinamente. Ontem à noite eu estava no Rio de Janeiro; hoje pela manhã, em São Paulo; à tarde em Brasília e agora em São Caetano do Sul. Exatamente, em São Caetano do Sul com sua carta....com você.
É incrível, mas eu estou com você novamente. Vendo você numa garota escolar que passa por mim na rua. Eu sempre tive duas manias irreparáveis: a primeira, observar ao máximo o comportamento dos seres, até mesmo dos inanimados; e a segunda, buscar uma comunicação com eles, até mesmo espiritual. Eu não consigo olhar, sem ver; nem ver, sem imaginar o interior das coisas. Eu não consigo falar, sem sentir (já entrei bem, várias vezes, por falar o que sentia, a quem não devia ou não estava preparado para ouvir); e não consigo sentir, sem reagir.
Eu olho, vejo, penso, sinto e reajo. Isso é uma rotina. Agora eu estou olhando a sua carta, estou vendo você; pensando no que você disse; sentindo uma imensa saudade e só posso reagir, reestabelecendo uma comunicação entre nós.

Brasília, 6 de Dezembro de 1972
Minha querida Aluna
Se você ficar satisfeita em saber, creia, sua carta chegou no momento certo. Aliás, elas sempre chegam nos momentos certos. Pena que nunca chegam.
Eu estava muito cansado de minhas viagens. Minha família houvera ficado em S.Paulo e estava me sentindo muito só. O meu trabalho, por si só, não era suficiente para modificar esse estado. Fico às vezes, dias inteiros despachando papéis (você sabe o que quer dizer isso? - Não queira saber nunca. É a burocracia, minha querida). É o que não devia ser. Outras veze4s, fico mergulhado numa montanha de papéis, cheios de palavras completamente despidas (que vergonha!) de conteúdo. E o que eu quero, não é nada disso. Eu queria estar, novamente, no meio de vocês. Ensinando, às vezes; aprendendo outras, mas falando a mesma língua e observando as pessoas que têm o mesmo padrão de entendimento que o meu. Qualquer dia eu largo tudo e volto correndo. Aí, entretanto, eu não sei se vou encontrá-las novamente.
Eu estava assim, quando sua carta chegou. Por aí você pode imaginar a minha satisfação. Vou parar para continuar depois. 
Dia 10/12/1072
Foi bom mesmo eu haver parado. Eu já estava começando a falar somente de mim, quando eu devia estar falando de vocês.
Fiquei muito satisfeito em saber do seu reencontro consigo mesma. E, embora você não goste que outras pessoas interfiram em sua vida, eu vou me arriscar a fazê-lo.
Dia 13/12/1972
Nós sempre devemos ouvir. Ouvir até mesmo as pessoas mais humildes e de outra mentalidade que a nossa. Foi exatamente por esse motivo é que fomos dotados do sentido da audição. Entretanto, é muito difícil saber ouvir. É até mais difícil do que saber falar.
Isso não quer dizer que ouvir seja sinônimo de concordar.
Dia 14/12/1972
A vantagem de ouvir é a seguinte:
  1. Se concordamos, tivemos lucro porque conseguimos apreender alguma coisa com terceiros. Pudemos recobrar o caminho da razão e alcançar alguma coisa com mais facilidade;
  2. se não concordamos, fortaleceremos, provavelmente, o nosso ponto de vista contrário;
  3. se concordamos em parte e discordamos em outra, afinal, nos ajustamos.
 Dia 15/12/1972
Você, Aluna, sempre me pareceu uma garota de opinião. e de opinião bem formada. É claro que, apesar de sua genialidade e precocidade você de quanqleur forma não tem muita experiência na vida. Afinal de contas, são apenbas 13 aninhos que no NATAL se transformarão em 14 (não esqueci). As suas amigas, como você, têm as mesmas qualidades e a mesma inexperiência. É natural, portanto, qiue haja choques. Mas, nem preciso precisa virar UMA FERA
Dia 25/12/1972
Parabéns a você
Nesta data feliz!
Muitos anos de vida!
Etc....etal.
Dia 2/1/1973 
(no original ele continuou escrevendo 72 - NE)
A correria que esse final de ano provocopu amis o meu trabalho normal, fizeram com que eu não soubesse onde havia colocado a minha carta. reencontrei-a e vou mandá-la assim mesmo. Nunca rasgo o que escrevo.
Dia 31/1/1973
Aluna
A sua classe continua vencedo em matéria de carta.
Recebi: 3º D - sua, E., S., N., S. = 5
3º A - S. e C. = 2
Por enquanto somente escrevi para a E. (não sei o qie aconteceu com ela, pois não sei nem se recebeu a minha carta; para a N., idem) e para a S. (essa menina é espetraculçar. Não lhe conto o que ela me escreveu, mas sinceramente é espetacular). Vou escrever para ela novamente.
Um abraço
Professor
P.S. - Escreva novamente. Peça a S., E. e N. que me escrevam também.

EM LETRAS VERMELHAS (URGENTE)
S.O.S. (SOCORRO!)
MANDEM NOTÍCIAS COM URGÊNCIA.
NÃO ME DEIXEM SEM LER.
PROFESSOR
FELIZ ANO NOVO A TODOS OS SEUS
PROF.

NE - Na medida do possível as postagens obedecerão a estrutura original das cartas. Algumas vezes farei interferências com fonte diferenciada para situar melhor o leitor.