Correspondentes

Aqui estão reproduzidas as cartas trocadas entre dois amigos: uma adolescente e seu professor de Português, que ficava "louco" com os erros crassos que ela cometia. A troca de cartas começou quando ela estava com 13 anos e ele, devia ter uns 40. A amizade dura até hoje: ela tem 50 e ele quase 80. Mas a frequência diminui muito quando ela se casou, aos 20 anos. As cartas continuaram a existir, porém, com maiores intervalos.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Quarta carta

Esta carta aparentemente não tem data. Acontecia muito. E quando a Aluna percebeu, logo começou a numerá-las. Por isso sabe a ordem até os dias de hoje. Mas nesta carta, escrita num papel de seda e datilografada, (coisa rara porque o Professor - como ele mesmo revela no final - não gostava de máquinas de escrever, assim como nunca gostou de computadores tanto que nunca aprendeu a lidar com eles) o Professor coloca a informação sobre a data no corpo do texto. Ao longo das três páginas ele fez anotações à mão nas margens do papel. Conforme a transcrição de cada página vou colocar os trechos manuais em fontes e cores diferentes. Bem como as minhas observações. As cartas são um registro da história da época. Ele cita Nixon, a Guerra do Vietnã, Sartre, os hippies...à medida que formos avançando vou contextualizando como fiz com a referência que ele faz a "pessoas que comem carne humana".

Aqui, Brasília, às 8h00 (cedo pra burro!) de um dia que ainda está hesitante, entre chuva e sol. Na verdade, já estamos no dia 18 de um ano que, alçando o primeiro voo, já está embalando numa velocidade incrível. Veja, por exemplo: faltam apenas 28 dias para o meu aniversário, 44 para o Carnaval, 90 para a Semana Santa, 92 para a Páscoa (eu tive uma aluna que por nascer na Páscoa recebeu o nome de Pascoalina. Você já pensou se chamasse NATALINA...Uf!), 230 para o dia da Independência (cuidado...Carmelo atacará de novo, de fanfarra e desfile), 339 para o Natal e seu aniversário (arrasta pé "quente" - desta vez não perco) e, finalmente, o começo de tudo novamente.
Como você pode observar, o tempo corre.
Aliás, essa é uma observação que todos fazem, sem entretanto se aperceber do erro que ela insere. Não é o tempo que voa, corre, etc..., somos nós que, ou queremos fazer tudo antes do tempo certo (e ficamo lamentando que os dias estão custando para passar, ou somos muito devagar e fazemos tudo depois do tempo certo). PENSE NISSO (Observações filosóficas retiradas do caderno da vida por Professor etc).
O importante, minha cara, é:
Fazer tudo sempre...fazer mesmo, mas sempre nas horas certas. E ser correto e coerente com as coisas naturais, com as pessoas e com o próprio mundo. Não se deixar vergar por imposições alheias, mas também não querer ser o dono da VERDADE.
Querida ALUNA
Acabo de receber a sua 3ª carta. Momentos antes, eu havia colocado no correio a acarta coletiva para você, S., E. e N., endereçada para a casa da S.
Conforme lhe disse, aí em São Paulo, recebi a sua segunda carta. Não tenha o menor receio de que as suas cartas possam me aborrecer. O que iria me aborrecer muito, seria uma falta prolongada de notícias suas. Veja: o correio já é contra nós a sua carta, colocada dia 10, somente chegou dia 18...e, assim mesmo, colocando o código postal direitinho), se, por outro lado, a gente não escrever logo, aí, as coisas se complicarão ainda mais, né? Vocês não podem se subestimar. Nada do que você diz, pode ser cansativo. Afinal, foram apenas 4 folhas e meia. Tenho lido tanta bobagem, o dia todo, em jornais, revistas e outros papéis, que, quando recebo as cartas que eu espero, não só não me canso de lê-las, como de relê-las. E, afinal, quando a gente se comunica com as pessoas que se afinam conosco, sempre estamos apreendendo alguma coisa e tirando proveito dela. (fim da página 1)

(manuscritos) Aluna: Você já ouviu o último LP do Roberto Carlos? Que coisa linda não? Experimente analisar a letra de A Distância.

Quanta coisa eu gostaria de aprender ainda. Quanta coisa que eu não sei. A Universidade da vida tem me ajudado bastante. Mais mesmo que as Escolas que eu ensinei. Mas o mais importante que eu deveria saber: eu já descobri. Jamais saberei quanto tempo ainda terei para saber das coisas. Isso sim é sufocante.

(página 2)
Realmente, OUVIR não é sinônimo de CONCORDAR.
Os nossos sentidos foram criados para desenvolver, cada um, uma função certa e determinada. Os ouvidos têm a finalidade de fazer com que as pessoas sintam as manifestações exteriores. Hoje, já se fala em poluição sonora. A poluição existe sim, mas para todos os sentidos (visão, olfato, etc...) Não quero dizer, entretanto, que não devamos senti-la. Devemos, isto sim, sentir tudo o que está errado, para que possamos combater. Até para poder DISCORDAR, é importante saber OUVIR. Às vezes, logo às primeiras palavras dos outros, vamos percebendo que as pessoas estão em outro mundo...que jamais iremos concordar e etc....interrompemos e nos damos mal, porque não houve tempo para colocar em funcionamento a máquina cerebral, que iria dizer, se poderíamos ou não CONCORDAR. A mera concordância com tudo, também é ineficaz. Revela apenas uma negligência nossa. É o comodismo falando mais alto. Fico satisfeito em saber que você já entendeu isso, pois é muito mais importante para a sua vida e formação futuras. Quanto à sua correspondência com a E., que já foi por água abaixo, eu espero que ambas já tenham se refrescado (as cucas andavam muito quentes e até que essa água veio bem), e continuem novamente, onde haviam parado. É bom também saber que a E. emitiu dois juízos de valor a seu respeito (para pior e, depois, para melhor). Ela lhe serviu como um termômetro que lhe media a exteriorização, em relação á Humanidade;.

Aluna! Achei genial o seu diálogo com o Diário. É isso mesmo. É isso aí. Quando a gente está cheia, deve desabafar. Foi o que você fez, com o diário. E ele, se for sincero, representa a sua consciência. É...é isso aí, menina. Você é bem consciente. Eu jamis me enganei. Além disso você é bastante autêntica. Afinal, como não ficar agressiva, quando a gente sofre pressão psicológica, mental, visual, auditiva, olfativa o dia todo. Os homens, geralmente os homens, de manhã, a primeira coisa que fazem é ler o jornal (Guerra do Vietnã, guerrilhas, massacres, bombardeios, assaltos, ludibriação, inflação, terremotos, enfim, sangue...má-fé...prostituição...debilidade...loucura. Como resistir a tudo isso, sem se impressionar. Como descarregar tudo, a não ser agredindo também. A não ser que consigamos nos alienar. Mas e daí? Os hippies são alienados, mas também não constroem NADA. Isso mesmo que você ouviu - NADA.
Eu até que a achei muito CALMA e SEGURA de SI. Você, realmente, fez as pazes com o mundo. Agradeço a confiança que você deposita em mim, deixando que eu possa interferir. Creia que eu somente farei isso, em último caso. Sempre tive por norma (não a servente do colégio...IRRA!) não interferir, desnecessariament5e na vida dos meus alunos. Mesmo em aula, sempre permiti (...) (fim da página 2)

(manuscritos) E a C.? Cala-te boca! Escapou-me o seu nome. Ah!Ah!Ah!

Oi, Aluna! Que você achou daquela música do Roberto Carlos que diz: "MAS AGORA EU SEI O QUE ACONTECEU"

(página 3)
(...) que todos fizessem o que bem entendessem. Por esse motivo fui até duramente criticado. É aquele negócio: todo mundo acha que está certo. Os outros (professores) acham que eles é que andavam certos, desconhecendo a existência dos alunos, como amigos. Eles talvez achem que alunos, são apenas alunos e devem ficar nessa posição9. Eu não acho, nunca achei, e não vou mudar. Os meus melhores amigos sempre foram os meus alunos. Alguns alunos, também me criticam pelo excesso de liberdade. Sabe...ALUNA...eles não percebem que a LIBERDADE que eu dou é controlada pelo espírito de responsabilidade que eu exijo de todos. Daí o porquê de eu não interferir. Somente em casos extremos.

A 3ª A vem reagindo.

Você falou na Ene. Como vai ela? Gosto muito dela. Pena que ela não tenha aprendido a escrever, né? Lembra-se da Lne? Mesmo caso. E assim, tantos outros, né? O MOBRAL AINDA NÃO CHEGOU POR AÍ? Ou será que é preguiça. É verdade que a tarifa postal aumentou para 0,40. Alguma coisa existe.

Achei a sua mãe muito legal. Não poderia ser diferente. Está explicado porque você é tão bacana. Vocês se entendem muito bem. Além disso ela é uma professora. Assim você estará garantida em sua formação, pois vai apre4ndendo e vai se formando com ótima orientação. A minha esposa também gostou muito dela e manda-lhe recomendações. Aliás, se você não sabe, a minha esposa também gosta muito de você. Acha que você é BONITA e INTELIGENTE. 
Numa outra carta, vou dedicar algumas linhas a sua cachorrinha que faleceu. Mande-me dizer o seu nome e dê características dela.

JEAN PAUL SARTRE é GÊNIO.
Não contestarei o que ele disse. Mas...
Nós temos opção. E nisso ele tem razão. Podemos optar, livremente por tudo. Até por ficarmos sós e sem desculpas. Mas, a verdade é que a solidão não deve ser INTERIOR. Exteriormente podemos ficar sozinhos, mas interiormente não devemos. O vazio mental é tão negativo, que até dormindo, muitas vezes, pensamos, convivemos com as pessoas, revemos fatos e situações, despertamos nossas vontades e intenções e acordamos bem ou mal dispostos.

Assim, ALUNA, saiba que quando tudo nos faltar, quando tudo nos isolar ou quando nós mesmos nos isolarmos, a não ser que estejamos loucos, o nosso interior ainda terá muitas situações positivas para serem lembradas e recordadas. E recordar é VIVER. E SER LIVRE È TÃO IMPORTANTE COMO VIVER.

Um abração

Professor

(parte manuscrita) O Nixon parece que não se toca, né? 

Agora já existe até gente que come gente. O pior é que todo o mundo anda falando nisso. (penso que ele se referia à notícia sobre um acidente de avião que caiu na Cordilheira dos Andes, cujos sobreviventes se alimentaram da carne dos outros passageiros mortos. Na época, não havia internet e as notícias demoravam a chegar. O acidente havia acontecido em outubro de 1972 mas provavelmente somente em janeiro foi divulgado de que forma os sobreviventes sobreviveram.) http://pt.wikipedia.org/wiki/Voo_For%C3%A7a_A%C3%A9rea_Uruguaia_571

PS. Sou péssimo datilógrafo. Não repare nos erros, pois não tive tempo para a correção.


Nenhum comentário:

Postar um comentário